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Análise de admissibilidade, perante a CCJC, sobre a PEC 32

 
NOTA TÉCNICA 12/2021-CONACATE

 

 

ASSUNTO: Análise de admissibilidade, perante a COMISSÃO DE CONSTITUIÇÃO, JUSTIÇA E CIDADANIA, sobre a Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa.

 

 

 

1. RELATÓRIO

 

A Proposta de Emenda Constitucional n. 32 de 2020, Reforma Administrativa, promove alterações no regime jurídico único, com a retirada da estabilidade para os novos servidores, excetuados os ocupantes de cargos considerados típicos de Estado e cria cinco categorias de servidores públicos (art. 39-A), das quais apenas duas dependem de aprovação prévia em concurso – cargo de prazo indeterminado (art. 37-A) e cargo típico de estado (art. 37-B); no vínculo de experiência (art. 39-A, I) a realização da atividade é uma fase do concurso e outras duas dispensam concurso – o vínculo de prazo determinado (art. 39-A, §2º) e o cargo de liderança e assessoramento (art. 39-A, V).  

 

A presente Emenda Constitucional foi submetida à decisão da Comissão de Comissão, Justiça e Cidadania (CCJC), onde o deputado Darci de Matos (PSD-SC) apresentou o relatório a respeito da matéria, concluindo com voto favorável à sua aprovação, com emendas para a retirada do dispositivo que proíbe que servidores ocupantes de cargos típicos de Estado possam exercer qualquer outra atividade remunerada e do trecho que amplia poderes presidenciais para extinguir entidades da administração pública autárquica e fundacional.

 

É o relatório, no que pertine.

 

 

 

2. ANÁLISE

 

Apresentamos nesta Nota, insumos e fundamentos para eventual voto em separado, no qual se analisa os limites do poder constituinte de reforma, o estado de exceção decorrente das restrições fáticas ao direito de reunião e manifestação diante do contexto da pandemia, a necessidade de interpretação ampla do conceito de cláusulas pétreas, os direitos sociais como dever de realização do estado e o direito fundamental à boa Administração Pública, do qual a estabilidade se faz necessária, com objetivo de demonstrar a inconstitucionalidade da Proposta e os motivos para a sua rejeição.

 

abe à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) a análise da constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e do mérito do projeto de emenda constitucional em questão.

 

Passa-se à análise.

 

 

1. Preâmbulo. Limites ao Poder Constituinte Derivado e sua interpretação.

 

O poder constituinte de reforma ou derivado, o fundamento de validade para as Emendas Constitucionais está estruturado no art. 60 da Constituição da República e, pela sua natureza, não é ilimitado.

 

A doutrina classifica suas limitações em materiais, circunstanciais (normalidade democrática) e temporais (procedimentos).

 

Os requisitos materiais são os limites de proteção das cláusulas pétreas, o núcleo essencial do pacto constitucional cuja alteração desnaturaria a própria Constituição.

 

Este núcleo é descrito no art. 60, §4º, que veda mesmo a apreciação de proposta contra: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.

 

É necessário realizar uma interpretação ampla do conceito de cláusulas pétreas. Como se verá, os direitos sociais integram o rol de direitos e garantias fundamentais protegidos pela Constituição Federal.

 

A leitura simplória do texto constitucional poderia conduzir um intérprete noviço à conclusão de que apenas as três hipóteses formais delimitadas no art. 60, §1º, podem restringir o direito do poder constituinte derivado.

 

Enquanto as restrições deste dispositivo quase não foram postas a teste nestes 31 (trinta e um) anos da Carta de Direitos, as restrições materiais do art. 60, §4º ­— proteção das cláusulas pétreas — foram objeto de amplo debate doutrinário e jurisprudencial, servindo de norte para este trágico momento.

 

O parágrafo quarto veda a deliberação de quatro hipóteses de emendas que atentem contra: i) a forma federativa de Estado; ii) o voto direto, secreto e universal e periódico; iii) a separação dos poderes; iv) os direitos e garantias fundamentais.

 

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou, entretanto, que este rol tem caráter exemplificativo, não taxativo, e deve ser interpretada sistematicamente, como a proteção geral ao núcleo do pacto constitucional.

 

Recurso extraordinário – Emenda Constitucional nº 10/96 – Art. 72, inciso III, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) - Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) – Alíquota de 30% (trinta por cento) - Pessoas jurídicas referidas no § 1º do art. 22 da Lei nº 8.212/91 – Alegada violação ao art. 195, § 6º, da Constituição Federal.

 

1. O poder constituinte derivado não é ilimitado, visto que se submete ao processo consignado no art. 60, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal, bem assim aos limites materiais, circunstanciais e temporais dos §§ 1º, 4º e 5º do aludido artigo.

2. A anterioridade da norma tributária, quando essa é gravosa, representa uma das garantias fundamentais do contribuinte, traduzindo uma limitação ao poder impositivo do Estado.

3. A emenda Constitucional nº 10/96, especialmente quanto ao inciso III do art. 72 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – objeto de questionamento - é um novo texto que veicula nova norma, e não mera prorrogação da emenda anterior.

4. Hipótese de majoração da alíquota da CSSL para as pessoas jurídicas referidas no § 1º do art. 22 da Lei nº 8.212/91.

5. Necessidade de observância do princípio da anterioridade nonagesimal contido no art. 195, § 6º, da Constituição Federal. 6. Recurso Extraordinário a que se nega provimento.
(STF, Tribunal Pleno, RE n. 587.008, Relator Ministro DIAS TOFFOLI, publicado em 06/05/2011).

 

O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrições de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF, art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais explícitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade.

(STF, Tribunal Pleno, ADI 446, Relator Ministro CELSO DE MELLO, j. 03/04/1991, P, DJ de 10/05/1991).

É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave que justifique o processo e o julgamento da arguição de descumprimento. Não há dúvida de que alguns desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. (...) não se poderá deixar de atribuir essa qualificação aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da Constituição. (...) É fácil ver que a amplitude conferida às cláusulas pétreas e a ideia de unidade da Constituição (...) acabam por colocar parte significativa da Constituição sob a proteção dessas garantias. Tal tendência não exclui a possibilidade de um "engessamento" da ordem constitucional, obstando à introdução de qualquer mudança de maior significado (...). Daí afirmar-se, correntemente, que tais cláusulas hão de ser interpretadas de forma restritiva. Essa afirmação simplista, ao invés de solver o problema, pode agravá-lo, pois a tendência detectada atua no sentido não de uma interpretação restritiva das cláusulas pétreas, mas de uma interpretação restritiva dos próprios princípios por elas protegidos. Essa via, em lugar de permitir fortalecimento dos princípios constitucionais contemplados nas "garantias de eternidade", como pretendido pelo constituinte, acarreta, efetivamente, seu enfraquecimento. Assim, parece recomendável que eventual interpretação restritiva se refira à própria garantia de eternidade sem afetar os princípios por ela protegidos (...). (...) Essas assertivas têm a virtude de demonstrar que o efetivo conteúdo das "garantias de eternidade" somente será obtido mediante esforço hermenêutico. Apenas essa atividade poderá revelar os princípios constitucionais que, ainda que não contemplados expressamente nas cláusulas pétreas, guardam estreita vinculação com os princípios por elas protegidos e estão, por isso, cobertos pela garantia de imutabilidade que delas dimana. (...)

(STF, Tribunal Pleno, ADPF 33 MC, voto do Relator Ministro GILMAR MENDES, j. 29-10-2003, P, DJ de 06/08/2004, grifos aditados).

 

Isto é, se o poder derivado está em uma situação limítrofe de democracia, como o reconhecido estado de calamidade pública em decorrência do COVID-19, não pode ser comparado e igualado ao poder constituinte originário, que configura o exercício democrático pleno da sociedade.

 

Gilmar MENDES e Paulo Gustavo Gonet BRANCO, afirmam doutrinariamente:

 

As limitações ao poder de reforma não estão exaustivamente enumeradas no art. 60, §4º, da Carta da República. O que se puder afirmar como ínsito à identidade básica da Constituição ideada pelo poder constituinte originário deve ser tido como limitação ao poder de emenda, mesmo que não tenha sido explicitado no dispositivo. (Curso de Direito Constitucional, p. 133, 8ªed.)

 

O poder constituinte derivado não é ilimitado, devendo manter a natureza do núcleo essencial constitucional, sob pena de exigir novo processo constituinte.

 

As restrições ao exercício deste poder são expressões do direito à segurança jurídica e ao devido processo legislativo. Segurança de que o texto constitucional, rígido e protegido, permaneça incólume nos momentos mais tenebrosos da República. Segurança de que o cidadão diante, das calamidades públicas e das restrições de direitos, não será surpreendido com mudanças abruptas em seu repertório jurídico fundamental.

 

Devido processo legislativo, pois este processo não se constitui apenas de uma sequência artificial de votações, sim de profundo debate político – expressão do pluralismo, art. 1º, inc. V, da CR – nas audiências públicas (art. 58, §2º, II, CR), no diálogo presencial entre os parlamentares, na participação popular e no recebimento caloroso das críticas cristalizadas nas manifestações de rua (art. 5º, inc. XVI, da CR).

 

Portanto, assim como as restrições materiais estão apenas exemplificadas no art. 60, §4º, as restrições circunstanciais do art. 60, §1º, podem e devem ser interpretadas de maneira extensiva na máxima proteção do regime democrático, da participação popular, do pluralismo político e dos demais direitos fundamentais.

 

 

2. Limites Circunstanciais ao Poder Constituinte Derivado.

 

Textualmente, o art. 60, §1º, lista três hipóteses de situações de exceção constitucional que impedem a emenda à carta magna: intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio.

 

A intervenção federal (art. 34, CR) representa limitação ao poder dos entes federados e multiplicação do poder executivo federal, distorcendo a distribuição de poder decorrente do processo eleitoral e a normal disposição de competências.

 

Por este motivo é causa impeditiva das mudanças constitucionais.

 

Enquanto um ente federado estiver limitado nos seus poderes e liberdade de ação, permitir a alteração do texto constitucional abre margem para manobras políticas de oportunidade que feririam de morte o pacto de direitos.

 

As outras duas hipóteses, dizem respeito a impossibilidade de alteração constitucional enquanto os direitos individuais de expressão, locomoção e/ou comunicação possam estar limitados – o estado de defesa e o estado de sítio (arts. 136 ss, CR).

 

O fundamento desta restrição é ainda mais claro.

 

Enquanto o povo, do qual emana todo o poder (art. 1º, da CR), está impossibilitado (ainda que parcialmente) de expressar-se livremente nas associações e nas ruas, de locomover-se por sua cidade e seu país, seus direitos estão em risco se deixados à álea da maioria de ocasião.

 

Seria extremamente temerário outorgar ao Congresso Nacional o poder de promulgar alterações constitucionais enquanto o povo está amordaçado pelos regimes de exceção, ainda que temporariamente e no combate a uma calamidade de grandes proporções da natureza (art. 136, da CR).

 

A participação popular direta e indireta no processo legislativo é seu fundamento último de validade. Retirada, não há democracia:

 

O modelo deliberativo apresentado por Habermas, inspirado nas questões colocadas pela Teoria Crítica, sustentava que a interação discursiva entre os cidadãos e representantes constitui o aspecto essencial para a formulação das decisões políticas e no processo de reconhecimento de direitos, liberdades e reivindicações individuais.

Neste modelo, conceitos como esfera pública e sociedade civil tornaram-se essenciais para a compreensão do processo de deliberação. No primeiro, prevalece a autoridade do melhor argumento, através da participação igualitária e pública dos cidadãos, e, com a inserção dos atores da sociedade civil, amplia-se a agenda de debate público com novos temas, objetos de discussão pautados pela argumentação racional[1].

 

Vale repetir, o poder não é exercido apenas pelos representantes, mas também diretamente pelo povo, seja nas ruas, seja pela participação em audiências públicas, pelo diálogo em gabinetes e corredores, pela pressão popular.

 

Portanto, para analisar a presença da vedação imposta no art. 60, §1º, não basta verificarmos a existência do ato formal de exceção, mas a efetiva normalidade democrática. Desde já afirmamos: Não estamos na plena normalidade democrática, este é o fato. Não podemos conceber que os direitos fundamentais estejam ameaçados por propostas de emenda à constituição em falso e limitado debate legislativo enquanto o povo está trancado em suas casas impedido de exercer seu fundamental direito às manifestações, à praça pública.

 

  1.  

2.1. Estado análogo ao de exceção decorrente das restrições fáticas ao direito de reunião e manifestação.

 

A situação do país é de um estado de exceção decorrente das restrições fáticas ao direito de reunião e manifestação. Pesquisadores do direito constitucional já analisam a relação entre a crise sanitária e estado de exceção, com objetivo de refletir sobre “os abusos que podem ser cometidos em nome da superação de uma crise, principalmente aqueles deflagrados como oportunidades e usados para além da medida necessária para se fazer cessar a ameaça” e conclui que há a “criação pelo Estado brasileiro de um estado de exceção subdeclarado” e com “clara mitigação dos direitos fundamentais.”[2]

 

De fato, está configurado um estado de exceção, e com a pandemia verificam-se estratégias cujo intuito não é fazer cessar a ameaça do vírus, mas retirar direitos sociais fundamentais de servidores públicos.

 

A noção de estado de exceção, foi desenvolvida por Carl Schmitt, que entende que neste o estado de exceção se define um soberano, porque é este quem diz o direito, e posteriormente, retomada por Giorgio Agamben, demonstra que nesse tipo de estado, os direitos e garantias fundamentais estão em risco. O estado de exceção “pede emprestada as vestes do Direito para transitar sem ser incomodado”,[3] e busca tornar a exceção como “regra.”

 

A liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI, da CR) é decorrência de dois direitos fundamentais, de expressão (idem, inc. IX) e de locomoção (idem, inc. XV). Direito individual de exercício coletivo, está na base da expressão popular da democracia direta. São as ruas, livres e desimpedidas, a concretização das liberdades, do poder popular, a demonstração máxima de um povo sem temor, que conduz a história do seu país.

 

Ruas esvaziadas, amordaçadas, são o objetivo e tranquilidade de todo regime autoritário. E a história mostra que os projetos de ditadores utilizam de qualquer ferramenta para cercear as praças. Sejam as baionetas, os canhões ou ferramentas mais sutis.

 

Não sem razão, a Constituição da República estabelece tão ampla liberdade ao seu exercício, bastando o aviso à autoridade local, que deve cuidar para a plena fruição desta liberdade com o mínimo prejuízo ao direito à integridade física e à propriedade dos envolvidos e de terceiros.

 

A este sagrado direito, apenas o estado de defesa —e seu agravamento, o estado de sítio— podem restringir ou suspender, “para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136 da CR).

 

Na mais gravosa hipótese, estado de sítio, e apenas nesta, os cidadãos brasileiros podem ser impedidos de seu direito de livre locomoção (art. 139, inc. I, da CR).

 

 Ambas as restrições a direitos fundamentais trazem uma profunda sanção política, para restringir o uso indiscriminado da medida: impedem a aprovação de emenda à constituição.

 

 Como visto, apesar destes estados de exceção não terem sido declarados, estão em curso por via transversa.

 

Quanto ao direito de reunião, ainda que não esteja proibido, está impossível o seu efetivo exercício.

 

A transmissão comunitária em todo o país com mais de 440.000 (quatrocentos e quarenta mil óbitos) faz pairar sobre todos a suspeição de carregamento assintomático do agente viral.

 

Como suspeitos, indica-se a quarentena, isto é, a restrição de circulação e o evitar de aglomerações. É neste sentido, de repudiar e evitar aglomerações, que se pronunciou o Ministro de Estado da Saúde em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o COVID-19 no Senador Federal.

 

— Toda aglomeração deve ser dissuadida, independente de quem faça — disse Queiroga nesta quinta-feira (6), em resposta ao senador Rogério Carvalho (PT-SE) que o indagou sobre aglomerações provocadas por Bolsonaro.

Fonte: Agência Senado

 

Descumprir tal diretriz pode configurar os crimes, previstos no Código Penal Brasileiro (CPB), de infração à medida sanitária (art. 268 do CPB) ou desobediência (art. 330 do CPB), conforme Portaria Conjunta do Ministério da Justiça e Segurança Pública e Ministério da Saúde (Portaria MJSP/MS n. 5 de 17 de março de 2020).

 

Logo, caso o cidadão tente exercer seu direito constitucional à reunião pública pode incorrer em tipos penais, coloca a sua saúde em risco e gera risco aos demais presentes e às pessoas da sua convivência.

 

A toda evidência que não existe efetivamente a possibilidade de fruição do direito de manifestação e de locomoção no Brasil enquanto perdurar esta emergência de saúde pública.

 

Presentes as medidas decorrentes do estado de defesa – restrição ainda que localizada ao direito de reunião (art. 136, §1º, inc. I, da CR) – é despicienda a declaração deste estado para que o efeito da suspensão da tramitação de propostas de emenda à constituição seja acionado.

 

Ainda que não seja este o entendimento, a interpretação sistemática do art. 60, §1º, permite compreender de forma ampliada o seu rol para determinar que sempre que as liberdades fundamentais estejam seriamente limitadas, o texto constitucional deve ser preservado de alterações.

 

Sem povo não há democracia, sem devido processo legislativo democrático qualificado não é possível sequer propor, sequer avaliar, as propostas de emenda do texto constitucional.

 

Portanto, inadmissível a alteração constitucional do seu texto permanente neste momento da história nacional.

 

 

3. Ofensas materiais. Modificações tendentes a abolir direitos fundamentais.

 

3.1.

 

Isto afronta o conjunto dos direitos sociais estabelecidos constitucionalmente como deveres do Estado, deveres estes que devem ser exercidos de maneira impessoal e contínua, portanto por servidores públicos.

 

A Constituição Cidadã de 1988 estabeleceu estes direitos como deveres do Estado, a serem complementados, subsidiariamente, pela sociedade. A proposta de redação do art. 37 inverte em absoluto essa lógica, vejamos:

 

  Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  

  Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, na forma da lei, a:

 Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

  Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

 

Os direitos sociais são deveres primários do Estado, pois concretizam a cidadania e dignidade da pessoa humana – fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito (art. 1º, II e III) – e traçam os passos para os objetivos (art; 3º) de construir uma sociedade livre, justa, solidária, que erradique a pobreza e reduza as desigualdades e promova o bem-estar de todos.

 

Logo, devem ser reputados inadmissíveis por contrariarem direitos e garantias individuais, os dispositivos acima elencados.

 

 

3.2. Concurso Público como expressão do direito à igualdade, devido processo e eficiência. Inadmissibilidade da revogação do art. 37, II, e dos dispositivos que criam o vínculo de prazo determinado (39-A, II, §2º) e indeterminado (41-A, II).

 

A Constituição da República estipulou que cargos e empregos públicos devam ser preenchidos, em regra, pela via do concurso público (art. 37, II). A contratação temporária é limitada aos casos previstos em lei de excepcional interesse público (idem, IX) – aqueles nos quais a necessidade é passageira, imprevisível e essencial à prestação dos serviços. Em paralelo, existem os cargos em comissão, de livre-nomeação e exoneração – previstos limitadamente em lei.

 

  Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:             (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;         (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

IX - a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público;        (Vide Emenda constitucional nº 106, de 2020)

 

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020 altera este quadro, criando cinco categorias de servidores públicos (art. 39-A), das quais apenas duas dependem de aprovação prévia em concurso – cargo de prazo indeterminado (art. 37-A) e cargo típico de estado (art. 37-B); no vínculo de experiência (art. 39-A, I) a realização da atividade é uma fase do concurso e outras duas dispensam concurso – o vínculo de prazo determinado (art. 39-A, §2º) e o cargo de liderança e assessoramento (art. 39-A, V).

 

Art. 37.  (...):

II - a investidura em emprego público depende de aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos, na forma da lei;

II-A - a investidura em cargo com vínculo por prazo indeterminado depende, na forma da lei, de aprovação em concurso público com as seguintes etapas:

II-B - a investidura em cargo típico de Estado depende, na forma da lei, de aprovação em concurso público com as seguintes etapas:

V - os cargos de liderança e assessoramento serão destinados às atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas;

 

Art. 39-A.  A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico de pessoal, que compreenderá:

I -  vínculo de experiência, como etapa de concurso público;

II - vínculo por prazo determinado;

III -  cargo com vínculo por prazo indeterminado;

IV - cargo típico de Estado; e

V - cargo de liderança e assessoramento.

§ 1º  Os critérios para definição de cargos típicos de Estado serão estabelecidos em lei complementar federal.

§ 2º  Os servidores públicos com o vínculo de que trata o inciso II [prazo determinado] do caput serão admitidos na forma da lei para atender a:

I - necessidade temporária decorrente de calamidade, de emergência, de paralisação de atividades essenciais ou de acúmulo transitório de serviço;

II - atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; e

III - atividades ou procedimentos sob demanda.

§ 3º  O disposto no § 2º aplica-se à contratação de empregados públicos temporários.

 

O concurso público não decorre apenas da redação do art. 37, II, para que sua revogação seja suficiente para o excluir do campo constitucional.

 

É, antes, ferramenta essencial à concretização do direito à igualdade e isonomia dos interessados na vaga, (art. 5º, caput e I), do devido processo legal na aferição de direitos e deveres (art. 5º, LIV e LV), da transparência pública (art. 5º, XXXIII), e do direito ao estado probo, moral e eficiente – princípios basilares do direito administrativo (art. 37) que refletem a natureza republicana e democrática do Estado Brasileiro (art. 1º, caput), portanto decorrentes do sistema jurídico erigido pela Constituição e integrantes do rol de direitos fundamentais (art. 5º,§2º).

 

Neste sentido é farta a jurisprudência do e. Supremo Tribunal Federal, aprofundada nas diversas tentativas de indevidamente estender o conceito de contrato temporário – como faz a PEC no vínculo de prazo determinado – da qual se destaca a ADI  5267/MG que declarou inconstitucional lei do Estado de Minas Gerais autorizadora da contratação temporária, mesmo sem concurso público, de pessoal para atividades contínuas do Estado.

 

Elaborando este raciocínio, o Ministro relator Luiz Fux, atual presidente da Corte Constitucional, fez constar da ementa do julgado e de seu voto, respectivamente:

 

O concurso público, enquanto postulado para o provimento de cargo efetivo e de emprego público, concretiza a necessidade essencial de o Estado conferir efetividade a diversos princípios constitucionais, dentre os quais o de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e o da publicidade, garantindo igual oportunidade aos candidatos e controle social dos termos do edital e das etapas do certame.

 

É inconstitucional – por ofensa aos princípios republicano, do concurso público, da isonomia, da impessoalidade, da moralidade administrativa e da eficiência e às regras constitucionais de contratação temporária por excepcional interesse público – dispositivo de lei estadual que permita designação de pessoas sem vínculo com a administração pública para exercício de funções públicas de professor da rede estadual e de serventuário ou auxiliar da Justiça.

 

Na mesma linha, o Procurador-Geral da República afirmou em seu parecer nesta causa:

 

Impõe-se, como regra, a observância do concurso público para o provimento de cargo efetivo e de emprego público, por se tratar de critério democrático para a escolha dos melhores a desempenharem atribuições em nome do Estado. A par da eficiência, o concurso público ainda promove os princípios da impessoalidade e da publicidade, garantindo uma igual oportunidade aos candidatos e o controle social dos termos do edital e das etapas do certame.

 

Para ser válida esta modalidade, devem ser preenchidos os seguintes critérios: i) previsão legal; ii) tempo determinado; iii) necessidade temporária; iv) interesse público excepcional.

 

Isto é, atividades costumeiras, continuadas, previsíveis, em especial as atinentes às carreiras organizadas, devem ser realizadas por servidores com vínculo firme com a Administração Pública e selecionados por concurso público.

 

A redação proposta, ao contrário, permite a contratação sem concurso público para atividades continuadas de Estado, desde que a atividade ou procedimento seja sob demanda (art. 39-A, §2º, III, proposto).

 

Os poderes do Estado-Nacional são exercidos em seu nome pelos servidores públicos sobre toda a sociedade. Aos servidores, quaisquer que sejam as atribuições, são outorgados poderes, deveres e remuneração de origem pública. Valores coletados de toda a sociedade sob a forma de tributos são dedicados àqueles escolhidos para exercerem a função, teoricamente em prol do público.

 

A destinação dos recursos públicos deve ser precedida de uma sistemática republicana de seleção com critérios transparentes à toda a sociedade e objetivamente acessíveis a todos que o pleitearem.

 

Uma sistemática em que a seleção de pessoal seja um ato de vontade do gestor público, opaco, dependente de suas preferências pessoais torna desigual este acesso, permite o favorecimento e impede o escrutínio público dos motivos da escolha.

 

O concurso público, portanto, é decorrência da forma Republicana de governo, pois o cargo público – suas prerrogativas, deveres e remuneração – são bem público que deve ser disposto de modo transparente e igualitário, pois a todos interessa.

 

É decorrência da igualdade, não podendo o Estado em suas escolhas fazer distinções entre aqueles com ou sem acesso ao Poder, que façam os gostos de gestores de momento.

 

É decorrência do devido processo legal, pois sendo o acesso ao cargo igual direito de todos, a rejeição deve ser demonstrada em um processo objetivo, garantido o contraditório, o recurso, elementos possíveis apenas no concurso público.

 

De modo que o concurso público é um direito fundamental decorrente do sistema jurídico – estado democrático de direito e republicano – e de direitos positivados como a isonomia, a transparência e o devido processo legal.

 

A referida Proposta de Emenda, além dos motivos já explicitados para o reconhecimento da inconstitucionalidade, também atinge todos os direitos fundamentais relacionados diretamente ao concurso público, como a igualdade e até mesmo o princípio republicano

 

 

3.3. Do direito fundamental à boa Administração Pública. Da necessidade de garantia de estabilidade a todos os servidores públicos. A proposta de vínculo de experiência (41-A, II, B)

 

A estabilidade também pode ser considerada um direito fundamental, não apenas inerente ao exercício do serviço público, posto que direitos fundamentais protegem a pessoa do arbítrio do Estado.

Como leciona Di Pietro, a estabilidade do servidor visa proteger o interesse geral, para que as atividades sejam desempenhadas de forma impessoal, independente da vontade do servidor, do superior hierárquico e de políticos[4]:

 

A estabilidade no serviço público é própria da forma burocrática de Administração Pública e constitui garantia necessária quando se quer proteger o interesse geral, no sentido de que as atividades administrativas do Estado sejam desempenhadas com observância impessoal do disposto no ordenamento jurídico, independentemente da vontade pessoal do servidor e de seus superiores hierárquicos.

 

Souza Filho explica que “o servidor estável passa a ter ampla capacidade de colidir com interesses espúrios daqueles que detêm aptidão hierárquica de impor condutas e ditar ordens administrativas quando eivadas de ilegalidade manifesta[5]

 

A proteção do servidor público e da sociedade diante do arbítrio estatal depende a garantia da estabilidade no serviço público e não trata somente de um direito subjetivo do servidor, mas do direito do cidadão de ter serviços prestados por servidores que não cedem às pressões políticas e exerçam livremente suas funções.

 

Trata-se ainda, do direito fundamental à boa Administração Pública, que vem sendo pesquisado no direito brasileiro. Como fundamenta Cynara Monteiro Mariano e Francisco Arlem de Queiroz Sousa, “Sarlet afirma ter a Constituição de 1988 consagrado no art. 1º, III, e no art. 37, muito antes do que a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, um direito fundamental à boa Administração, pois esse só existiria onde efetivamente se promova a dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais que lhe são inerentes.”[6]

 

Cynara Monteiro Mariano e Francisco Arlem de Queiroz Sousa concluem que “não é extinguindo ou flexibilizando a estabilidade que o Estado se tornará mais eficiente e alcançará níveis de excelência na prestação de serviços públicos, pois, conforme vimos, os princípios da Administração Pública, dentre os quais a eficiência, também fazem parte do núcleo essencial do direito fundamental à boa Administração, não sendo incompatíveis. Os serviços públicos carecem é de financiamento adequado e do respeito ao seu regime jurídico (atacado tão precocemente depois anos depois da Constituição federal de 1988), pois sua ineficiência é muito mais verificável em causas outras, como a contratação de trabalhadores precarizados por meio de organizações sociais em desvio das finalidades e do escopo da atuação do Terceiro Setor.”

 

Portanto, a Reforma Administrativa não tem correlação com o princípio da eficiência, nem com a “modernização” do estado brasileiro, mas sim com a precarização do serviço público, preconizada pelo vínculo de experiência (41-A, II, B)

 

  Conclui-se que, a PEC 32/20 reveste-se de inconstitucionalidade pela afronta ao direito fundamental da boa administração pública, por retirar a estabilidade dos servidores públicos e tornar a prestação de serviço público precária e sujeita às vontades e pressões políticas.

 

 

3.4. Direitos sociais como dever de realização do estado. Intepretação conforme dos arts. 6º, 196, 204, 205, 208, 215, 217, 225 e 226. inadmissibilidade do contrato de gestão (art. 37-A) e do princípio da subsidiariedade (37, caput)

 

O art. 37 da Constituição Federal traz cinco princípios expressos que regem a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, pessoalidade e eficiência.

 

Nesse contexto, a PEC 32/20 traz como novo princípio expresso o “princípio da subsidiariedade.” Tal “princípio da subsidiariedade”, estabelece que a prestação de serviços pelo estado só deve ocorrer na forma subsidiária, ou seja, caso a iniciativa privada não tenha interesse, o Estado deve entrar com o serviço.

 

A Exposição de motivos é lacônica sobre o conteúdo deste princípio, afirmando apenas:

 

O princípio da subsidiariedade está associado com a valorização do indivíduo e das instâncias mais próximas a ele, prestigiando sua autonomia e sua liberdade. Tal princípio, historicamente consolidado, visa a garantir que as questões sociais sejam sempre resolvidas de maneira mais próxima ao indivíduo-comunidade, e só subsidiariamente pelos entes de maior abrangência, ressaltando, no âmbito da Administração pública, o caráter do federalismo.

 

A sua compreensão fica mais próxima quando conjugada com o instrumento de cooperação do art. 37-A, segundo o qual os entes públicos poderão transferir a execução de serviços públicos, mesmo integralmente, com entes privados, utilizando estruturas públicas e recursos humanos particulares, ao invés de servidores públicos, ressalvados apenas as atividades de cargos típicos de estado – este um conceito indeterminado.

 

Portanto, o efeito destes dispositivos é desobrigar o estado da prestação direta de serviços públicos, ingressando apenas onde desinteressante para a iniciativa privada – e após o fracasso da empreitada.

 

Assim, a PEC foi fundamentada na falsa ideia de que o mercado será capaz de responder adequadamente as demandas sociais, quando é cediço que o objetivo do mercado consiste no lucro, e não em atender minorias sociais.

 

A proposição de atuação da administração pública apenas e tão somente quando a iniciativa privada não quiser atuar não condiz com a Constituição Federal, como se verá a seguir.

 

A Constituição Federal de 1988, seguindo a regra inaugurada pelo Constituinte de 1934 sob a influência da Carta de Weimar, consagra de forma expressa um rol extenso dos direitos sociais, deferindo-lhes um tratamento ímpar, bem como alocando-os no Titulo II, dos Direitos e Garantias Fundamentais, e reservando-lhes um capítulo próprio (Cap. II – art. 6º ao 11), embora não constitua um rol exaustivo.

 

“Os direitos sociais são preceitos fundamentais, portanto, se forem violados – ou seja, se o Estado não implementar políticas públicas que garantam a concretude destes direitos, dando-lhes efetividade –, poderá haver impugnação por meio de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).” [7]

 

Daniel Sarmento[8], ao tratar sobre a alteração ou extinção do núcleo de direitos fundamentais, incluindo os sociais, leciona que a Constituição conferiu aos direitos sociais o caráter de cláusula pétrea, de forma que seu núcleo essencial não pode ser desnaturado pelo poder constituinte reformador, por estar diretamente ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana.

 

No caso brasileiro, nossa Constituição referiu-se apenas aos "direitos e garantias individuais" no seu art. 60, § 4°, que elenca as cláusulas pétreas, omitindo qualquer alusão aos direitos sociais. Uma interpretação puramente gramatical do dispositivo nos conduziria à conclusão de que estes últimos não estão protegidos, o que permitiria que o constituinte derivado os eliminasse, ao seu talante. Porém, é possível adotar outra postura exegética, que nos parece muito mais consentânea com o espírito da Constituição, para sustentar que também os direitos sociais, pelo menos no seu núcleo irredutível ligado ao conceito de dignidade da pessoa humana, encontram-se ao abrigo da sanha do poder reformador.

 

Sarmento continua: "Se as cláusulas pétreas são, como afirma Oscar Vilhena Vieira, "as reservas de justiça" da ordem constitucional, que protegem a sua identidade axiológica, não há como não reconhecer que os direitos sociais e econômicos, pelo menos no seu núcleo essencial, também estão por elas abrangidos."[9]

 

Assim, o art. 6º da Carta Magna estabelece diversos direitos sociais, como a saúde, a educação, a moradia, o lazer, o transporte e o trabalho, que exigem uma prestação positiva do Estado.

 

Os direitos fundamentais encontram-se no decorrer de toda Constituição Federal. O art. 196 da Constituição traz a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas; o art. 204 prevê que ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social; o art. 205 dispõe que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família e no art. 208, a forma pela qual o estado garante o direito à educação; o art. 215 prevê que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais; o art. 217, afirma ser dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais; o art. 225 trata sobre o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; e o art. 226. traz a família como base da sociedade, e com especial proteção do Estado.

 

Como se pode ver, a Constituição Federal traz diversos direitos sociais e impõe ao Estado o dever de garantia, de forma que esse não poderá eximir-se de suas atribuições a atuar apenas de forma subsidiária, mas sim como um verdadeiro “guardião” de direitos sociais.

 

Alexandre Moraes conceitua direitos sociais como direitos fundamentais do homem, essenciais para a caracterização de um Estado Social de Direito:

 

Direitos sociais são direitos fundamentais do homem, caracterizando-se como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria de condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, e são consagrados como fundamentos do Estado democrático, pelo art. 1º, IV, da Constituição Federal. (ALEXANDRE MORAES, 2016, p.348)

 

Nessa contextura, apesar da atribuição dos direitos e dos deveres fundamentais reputar responsabilidade comunitária aos indivíduos, tal responsabilidade não exime o Estado, para permitir que atue de forma subsidiária, posto que o Estado é o garantidor dos direitos sociais.

 

A intenção do Constituinte foi de construir um Estado Democrático, no qual o Estado não espera pelo mercado, para somente depois, caso o mercado não atue, cumprir suas obrigações de melhoria de condições de vida dos hipossuficientes, a concretização da igualdade, e a garantia dos direitos dos trabalhadores.

 

O princípio da subsidiariedade é inconstitucional, posto que transfere a responsabilidade do Estado na promoção dos direitos sociais ao mercado e à iniciativa, quando a Constituição Federal afirma expressamente ser de responsabilidade estatal a garantia dos direitos fundamentais sociais.

 

É de se destacar que a introdução deste princípio no texto constitucional, não condiz com o “corpo” da Constituição, que prevê um estado socialmente responsável, que não depende da vontade do mercado para garantir direitos fundamentais sociais.

 

A PEC 32 estabelece a possibilidade do Estado transferir atividades para a iniciativa privada, inclusive repassando servidores e infraestrutura. Trata-se, efetivamente, de uma forma disfarçada de realizar privatizações, também chamada de “desestatização” por alguns.

 

A privatização de serviços públicos, através de contratos de cooperação, pressupõe outorgar a estes entes atividades que não constituem seu fim primordial, posto que buscam excedentes econômicos segundo a lógica do capital, ou seja, o lucro.

Por vezes, o interesse público primário, verdadeiro interesse a que se destina a Administração Pública, pois este alcança o interesse da coletividade, é ultimado pela diminuição ou supressão da participação estatal em determinadas áreas tidas por essenciais à coletividade.

 

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1649, o Ministro Carlos Ayres Brito explicou que, assim como a atividade econômica é própria da iniciativa privada, o serviço público é próprio do Poder Público, e essa relação só concorre em casos excepcionais, com objetivo de atender interesse coletivo ou imperativo de segurança nacional.

 

“[...] a Constituição já havia dito que atividade econômica, art. 170, parágrafo único, é própria da iniciativa privada. Assim como o serviço público é próprio do Poder Público, atividade econômica é própria da iniciativa privada. São dois comandos claríssimos da Constituição. Entretanto, no art. 173, a nossa Lei das Leis permite que o Estado, em caráter excepcional, quebrante a força do parágrafo único do artigo 170, empresarie atividades econômicas e assim concorra com os particulares, mas em casos excepcionas, quando presentes ou o relevante interesse coletivo ou o imperativo da segurança nacional”

 

A Constituição da República não comporta a ideia de um “estado ineficiente e incapaz”, ou que atua como igual ao setor privado, conforme prevê o princípio da subsidiariedade, menos ainda pelas precarizações decorrentes dos contratos de gestão, que na verdade, tratam-se de privatizações.

 

Portanto, a PEC 32/2020 deve ser rejeitada, pelo reconhecimento da flagrante inconstitucionalidade, ao eximir o Estado de suas responsabilidades e atribuições na ordem constitucional e precarizar o serviço público brasileiro.

 

 

4. Conclusão

 

Face ao exposto e diante das observações supra, voto pela inconstitucionalidade, injuridicidade e boa técnica legislativa da PEC 32/2020, e pela inconstitucionalidade, injuridicidade e boa técnica legislativa do substitutivo apresentado pelo relator e, consequentemente, pela sua rejeição.

 

 

 

 

 

 

Fabio Monteiro Lima - OAB/DF 43.463

Mádila Barros Severino - OAB/DF 53.531

 

 

 

[1] MONTEIRO, Lorena Madruga; MOURA, Joana Tereza Vaz de; LACERDA, Daniel Freire. Teorias da democracia e a práxis política e social brasileira: limites e possibilidades, Sociologias, Porto Alegre, vol.17, n.38, Jan./Apr. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222015000100156>. Acesso em: 23 mar. 2020.

[2] JOSÉ ADÉRCIO LEITE SAMPAIO, LARISSA DE MOURA GUERRA ALMEIDA, LUANA MATHIAS SOUTO no artigo Crise Sanitária e Estado de Exceção: uma Reflexão Quanto aos Subprodutos Insurgentes da Pandemia do Novo Coronavírus. Dossiê Especial Covid-19 – Volume II.  Disponível em: <https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/4397/Sampaio%2C%20Guerra%2C%20Souto%3B%202020>. Acesso em: 18 de maio de 2021.

[3] Ramon Perez Luiz. O ESTADO DE EXCEÇAO COMO PARADIGMA DE GOVERNO: A PESSOA HUMANA A PARTIR DE UMA LEITURA EM GIORGIO AGAMBEM.

[4] DI PIETRO, M. S. Z. Estabilidade do Servidor Público. In: CANOTILHO, J. J. G.; MENDES, G. F.; SARLET, I. W.; STRECK, L. L. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2013. p. 5.012.

[5] SOUZA FILHO, M. J. N. de. Análise histórico-evolutiva do instituto da estabilidade e seus efeitos práticos na Administração Pública brasileira. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 14, n. 54, jul./set. 2016. p. 133. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/PDI0006.aspx?pdiCntd=244938. Acesso em: 18 de maio de 2021.

[6] Cynara Monteiro Mariano e Francisco Arlem de Queiroz Sousa em Estabilidade no serviço público: privilégio ou garantia ao próprio serviço público? Entre o direito à boa Administração Pública e a vedação ao retrocesso social. Disponível em: <http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/1197/851>. Acesso em 18 de maio de 2021.

[7] Rachel Glatt, A EFETIVIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL, Departamento de Direito da PUC RIO

[8] SARMENTO, DANIEL. DIREITOS SOCIAIS E GLOBALIZAÇÃO: LIMITES ÉTICO-JURÍDICOS AO REALINHAMENTO CONSTITUCIONAL, pg. 165

[9] Idem.