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O relacionamento entre o Ministério Público e o Poder Legislativo

Ricardo Prado Pires de Campos
Presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático, procurador de justiça aposentado e mestre em Direito Processual Penal.

 

 

Recentemente, fui convidado a falar em programa da Câmara Municipal de São Paulo acerca do relacionamento entre o Ministério Público e o Poder Legislativo, pois, as relações entre as instituições nem sempre são as melhores. Há muito mal-entendido e ruído nas comunicações, isso leva a incompreensões e, por vezes, a conflitos.

 

O relacionamento entre as instituições é formal e cordial, mas entre os membros, por vezes, é estressante. De certa forma, isso é inevitável em alguns casos, posto que o Ministério Público exerce um papel importante de fiscalização dos bens e rendas públicas, e muitos atos de gestão podem ser objeto desta fiscalização.

 

Ninguém gosta de fiscal. As pessoas querem fazer as coisas a sua moda, e quando têm de dar satisfação a outras, se sentem desconfortáveis e relutantes. Em parte, isso é da natureza humana. Todavia, quando envolvem bens públicos, onde os gestores administram bens alheios, o ato de prestar contas se mostra imprescindível.

 

O Ministério Público não detém o poder de punir os agentes públicos que violem a legislação, mas tem o poder de provocar o Judiciário, que é quem detém o monopólio da jurisdição e pode punir as pessoas, agentes públicos ou privados. É óbvio que, em um Estado Democrático de Direito essas punições somente devem ocorrer uma vez obedecido o devido processo legal, o que inclui a possibilidade de defesa e oitiva do acusado.

 

A relação do MP com o Poder Legislativo não se restringe, no entanto, à fiscalização do destino dado aos recursos públicos. Ela é muito mais ampla. O Ministério Público obteve, na Constituição de 1988, inúmeras funções públicas relevantíssimas, incluindo a defesa da ordem jurídica, da Constituição, do meio ambiente, das populações indígenas, dos direitos assegurados na Constituição, e vários outros.[1] E para dar conta de suas funções pode utilizar-se das ações penais, do inquérito civil e das ações civis públicas, dentre outros instrumentos.

 

O Ministério Público foi constituído como um defensor da sociedade, e não dos poderes do Estado. Aliás, foi proibido de exercer a representação judicial dos poderes públicos (art.129, IX, da Constituição Federal).

 

Essa nova postura colocou o Ministério Público fora do âmbito do Poder Executivo, ao lado do Poder Judiciário, como função essencial à Justiça, mas sem subordinação, quer ao Executivo, quer ao Judiciário.

 

Além da autonomia institucional, administrativa e financeira, os membros do Ministério Público tiveram garantida sua independência funcional (art.127 da CF). Mas no que consiste essa independência? Consiste numa prerrogativa do membro do MP de que, no exercício de suas funções, ele não está subordinado aos demais órgãos da instituição — exerce suas atribuições de forma independente. Ou seja, os membros do Ministério Público exercem suas competências vinculados à lei e aos fatos, mas sem subordinação hierárquica.

 

Existem duas formas de organização: verticais e horizontais. As verticais são marcadas pela hierarquia, e, talvez, ainda sejam a maioria das instituições. Há diversos níveis de chefia e muitos subordinados. O exemplo típico é o Exército ou as Forças Armadas. O Poder Executivo em geral, também, funciona dessa forma. As empresas igualmente, embora alguns detenham autonomia (membros do Conselho de Administração por exemplo).

 

O Poder Legislativo, no entanto, é exemplo típico de organização horizontal. Não há hierarquia entre os membros do Parlamento, sejam eles Deputados, Senadores ou Vereadores. Existem órgãos de direção: a Mesa Diretora, o Presidente da Casa, mas eles não podem dar ordens sobre como os membros do Legislativo irão votar, discursar ou exercer as demais atividades de seu mandato.

 

Os órgãos de direção existem para organizar os trabalhos. Possuem, por vezes, poder disciplinar, podem punir nos casos de desvio de função ou abuso do poder, mas não podem interferir no exercício do mandato parlamentar. O Deputado ou Senador é o único responsável por suas opiniões, palavras e votos. [2]

 

Pois bem, o sistema organizacional do Ministério Público é similar ao do Parlamento, é horizontal, não vertical.

 

O Procurador-geral de Justiça nos Estados e o Procurador-geral da República, no âmbito da União, não detêm poderes para determinar o teor das manifestações dos demais membros da Instituição, pois, estes gozam de independência funcional.  Ou seja, exercem suas funções com absoluta independência em relação aos demais órgãos de controle.

 

Cada membro da instituição (promotor ou procurador) detém uma parcela do poder delimitada por lei, sendo que sua competência define os limites de sua atribuição, de seus poderes e de suas responsabilidades.

 

Há órgãos de administração superior, como a Procuradoria-Geral, a Corregedoria, ou os órgãos colegiados, mas eles não podem invadir a liberdade de convicção do membro da instituição.

 

Em Direito Administrativo, há uma distinção entre os servidores públicos e os agentes políticos. Os primeiros cumprem as ordens, os segundos tomam as decisões, definem o caminho. Os agentes políticos, todavia, não são apenas os membros do Poder Legislativo e Executivo, os quais são eleitos para os cargos. Também, são considerados como agentes políticos os membros do Poder Judiciário e os do Ministério Público [3], embora a forma de acesso aos cargos seja diversa: concurso público em lugar de eleição. E são considerados agentes políticos exatamente porque dispõem do poder de decisão. Não recebem ordens e são responsáveis pelas decisões do Estado nos limites de suas competências.

 

Claro, nenhum desses agentes dispõe de poderes absolutos, nem de liberdade absoluta. O Estado Democrático de Direito é regido por uma série de normas estabelecidas na Constituição e nas leis. Todos os membros de todos os poderes estão sujeitos à Constituição e às leis. Devem obediência ao sistema normativo, ao Direito, consolidado na Constituição e nas leis do país; mas não estão subordinados a um superior hierárquico.

 

Essa independência funcional, atribuída aos membros do Ministério Público, assim como aos membros do Poder Judiciário e aos do Parlamento, é essencial ao desempenho de suas funções. É da natureza dos cargos. O juiz não daria conta de exercer suas funções se ficasse esperando a solução do órgão hierarquicamente superior. O juiz decide e suas determinações, muitas, são executadas imediatamente. Se a parte discordar, recorre, e o tribunal pode vir a modificar. Há mecanismos de controle, mas o juiz dispõe de liberdade de convicção para julgar.

 

O mesmo ocorre com o Ministério Público, o membro de primeiro grau pode apresentar uma denúncia, ingressar com uma ação. O membro de segundo grau pode discordar, mas não pode impedir que o primeiro aja.

 

Essa tem sido uma das grandes vantagens do Ministério Público no que toca ao combate à corrupção, à defesa do meio ambiente, ao controle das contas públicas, e inúmeras outras frentes. O membro do MP, mesmo de primeiro grau, tem absoluta liberdade de ação. Deparou-se com um fato ilícito, teve notícia de alguma ilegalidade, ele começa a tomar providências: requisita inquérito, instaura procedimentos, apresenta petições em juízo, e muitas outras medidas. A função do MP é ser iniciativa, dar o pontapé inicial, provocar as ações dos demais Poderes.

 

O Ministério Público, sozinho, não detém o poder de consertar as mazelas do serviço público, nem da iniciativa privada. O Ministério Público, no entanto, representa a voz da sociedade clamando por mudanças, por correções de rumo, por melhorias. Por isso, incomoda tanto e a tanta gente.

 

Da mesma forma que a imprensa exerce um papel relevantíssimo na sociedade, dando voz a muita gente, permitindo o debate das causas públicas e particulares, propondo aperfeiçoamentos, apresentando críticas; também, o Ministério Público exerce esse mesmo papel, mas no âmbito do Estado, discutindo, em juízo, as demandas sociais e apresentando propostas de solução para os mais variados temas.

 

É certo que os membros do MP não são os detentores únicos da verdade, ninguém é. O conhecimento científico é o mais perto que chegamos da verdade, mas, também, ele possui limitações. No entanto, o Ministério Público, assim como a magistratura, dispõe de um corpo de agentes altamente especializados.

 

Alguns membros fazem “clínica geral”, trabalhando com todos os ramos do Direito, especialmente em começo de carreira; mas, nas grandes cidades e capitais, há alta especialização. Profissionais que trabalham por muitos anos com temas específicos, e que, muitas vezes, se transformam em profissionais de altíssimo gabarito. Muitos são professores universitários, com pós-graduação. Esse conhecimento teórico aliado a muita prática profissional resulta em boa qualificação.

 

O Direito não é uma ciência exata como a matemática; por vezes, não comporta apenas uma única solução, e isso gera incertezas e incompreensões. A palavra final pertence aos Tribunais Superiores. Cabe ao Poder Judiciário dizer qual é a interpretação correta da lei, e  até que ele o faça, pode haver divergências. Se os processos fossem mais céleres haveria mais segurança jurídica.

 

Nos últimos anos, o Legislativo instituiu mecanismos na legislação para redução das incertezas: súmula vinculante,[4] decisões em recursos repetitivos e sistema de precedentes (CPC, arts.926 e 927) são algumas das inovações que experimentamos (e estão trazendo bons resultados). [5]

 

A vida, no entanto, é sempre mais ágil que as normas. Quando conseguimos consenso que se transforma em lei ou em jurisprudência nos tribunais sobre um determinado problema, surgem outros.

 

Exatamente, por isso, um grupo de agentes públicos, os quais são os responsáveis pela gestão do Estado, precisam dispor de liberdade de ação. Liberdade para inovar, criar soluções. Essa liberdade não é ampla, nem ilimitada. Está sujeita à Constituição Federal sempre, sob pena inclusive de perda do cargo.

 

Portanto, nos processos, o membro do Ministério Público, mesmo de primeiro grau, não recebe ordem. Ele forma sua convicção a partir dos fatos e das normas previstas na legislação, pode ouvir pessoas antes de tomar decisões e colher provas; mas suas ações sempre estarão sujeitas ao contraditório, com possibilidade de defesa e contestação pelos implicados, e com decisão final pelo Poder Judiciário.

 

O Ministério Público é uma instituição, onde cada membro é responsável por sua voz e por suas ações. A independência funcional garante a diversidade de opiniões e de soluções tão essencial à sociedade quanto à Democracia.

 

Por óbvio, não há pessoa nem instituição que não esteja sujeita a erros e críticas, mas o Ministério Público, na sua formatação atual, resultante da Constituição Democrática de 1988, tem construído uma folha corrida de relevantes serviços prestados à população brasileira. Tornou-se referência internacional. [6]

 

 

[1] Constituição Federal, Art. 129.

[2] Constituição Federal, Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.  (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

[3] Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 10ª.ed. atualizada, SP, RT, 1984, p.49/51.

[4] Constituição Federal, Art. 103-A.

[5] CPC, artigos 1036 a 1041

[6] António Cluny, “Modelo de atuação ministerial é referência para outros países”, in MPD Dialógico nº 50, 2016.